quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Descompasso

Aquele dia ela bateu na porta dele com cara de bom dia e sentou na cama com um sorriso de algo mais, sorriso de melhor amigo, de melhor amor. Ele auscultou seu coração e -não, você não leu errado, auscultou, com estetoscópio e tudo- sorriu um sorriso de tesouro raro e disse:
-o seu problema é lindo.
Ela bem tinha um problema, com nome médico e tudo, diziam hereditário, daqueles que faz a batida do coração soar diferente. E quando ele chamou aquilo de lindo ela desatou a rir, porque um descompasso no coração pode ser tudo, menos lindo.
Ela brincou:
-Se ficar comigo vai virar médico particular.
Ele não titubeou:
-Eu vou adorar cuidar de você.
--
Hoje ela nao bate mais na porta dele com cara de bom dia e quando o encontra não sabe se chora, se olha no olho, se olha pras mãos. E, estranhamente, depois dele o descompasso no coração nunca mais voltou. E ele nem sabe.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Se você disser que eu desgrafio amor...

Desgrafiar: Do Ticionário des + grafia = ausência de representação escrita da palavra
Eu vivia di arrepios.
Arrepiava a cada portugues errado que lia.
Com migo, brrr, ancioso, brr, min, brrrrr
Era de arrepiar a ponta do fio de cabelo na cabessa.
Julgava, criticava, corrijia.
Era peconceito, conhessimento, chatice? Sabia não.
Mim não sabia, mas mim encomodava.
A tal da palavra errada doía.
.
Resolvi me arriscar e viagei pelo mundo.
Uma língua que eu desconhessia, numa terra que eu me entrometi.
Lá ninguém me corrijiu quando eu escrevi menas coisa certa que errada
ninguém rio da minha cara, ninguém pôs-se a me escluir gramaticalmente.
Aos poucos fui entemdendo o quanto era idiota definir alguém por erro ou asserto.
Bem se vê que o inportamte é ser compreendido.
E a tal da palavra errada duía menos, ensinava mais.
Tem tanta istória escondida ortograficamente por aí.
.
Cheguei ao fim desse pençamento sem saber mais se ‘corrigiu’ é com ‘g’ ou com ‘j’.
O célebro meio fundiu, a cabessa meia embaçou.
E vem alguém me perguntar se agente liga? Liga não.
Hoje se tu cantar com voz de bossa que eu desgrafio, amor... eu rio, sorrio, desvio
E desgrafio denovo.
.
Axo mesmo é que essa grafia sem ortografia pega.
E ce pega, sê paciente.
Tem sua grassa, essa desgraça. (;

terça-feira, 30 de abril de 2013

Gli sembro piu dolce anche la morte

“Você sente as coisas, você vê coisas”, o véio disse um dia. Eu nunca tinha acreditado, até hoje.
“…até o último fio de cabelo. Você está em paz.” Foi a última coisa que ouvi. Eu não estava mais lá e não saberia dizer ao certo se o porto seguro que eu deveria imaginar era a ampla varanda de azulejos vermelho queimado da fazenda do meu avô, ou se seria a pequena sacada de concreto do apartamento em Ubatuba. Não sei onde estava, mas sei com quem eu estava.
Meu nariz ardeu, segurando a vontade de chorar.
Os finos cabelos ondulados, meio arrumados, meio com frizz. Curtos e com um tom leve de grisalho. O nariz arredondado, batatudo, sobre os lábios bem desenhados por um lápis de boca da cor do batom claro. Eu podia enxergar os dentes perfeitos da dentadura que ela deixava repousar em um copo na cozinha durante a noite mesmo se ela não sorrisse. Estavam tão claros na minha lembrança. Meu nariz continuava ardendo, implorando que eu chorasse.
Ficou sentada ao meu lado sem dizer nada, mas trouxe paz. E por sabe lá quanto tempo eu senti como se fosse a pessoa mais importante do universo só por ela ter escolhido estar ali ao meu lado depois de tanto tempo. Era tão importante pra mim.
Eu podia sentir o cheiro dela. Cheirava a pele velha com o cítrico suor que ela costumava deixar na cozinha quando cozinhava. Pode parecer ruim, mas era o melhor cheiro do mundo, o da pele dela. Ela sorriu, eu sorri, respirei fundo e ficamos quietas uma ao lado da outra. Nada precisava ser dito.
Voltei a me sentir no colchonete da sala. Uma voz chamava. Soltei todo o ar como se expulsasse a lembrança.
Ainda não sei explicar como ela veio a mim, mas o nariz continuou ardendo uma despedida sem adeus.
“Você vê coisas”, disse o véio certa vez. Graças a Deus eu vejo.
Senti il dolore nella musica, e si alzo dal pianoforte Ma quando vide la luna uscire da una nuvola, Gli sembro piu dolce anche la morte. ♪

sexta-feira, 29 de março de 2013

Final alternativo

E tem aqueles dias que nascem para dar errado.
Ela sabia disso, ouviu seu sexto sentido cutucando o dia todo, alertando. Mas deu as costas para ele e insistiu. E lá foi o errado fazendo seu trabalho perfeito. É que quando ele resolve interferir tudo desanda. Alguns esperneiam, outros morrem de ódio, mas nada detém um dia que amanheceu para não dar certo.
Ciente disso ela simplesmente desandou a deixar desandado e criou seu próprio final alternativo para um dia perdido. Comprou uma calça de pijama, um par de chinelos, desmontou-se dos saltos e da calça social e vestiu-se rindo de si naquele banheiro apertado. Quando saiu o restante dos passageiros olhou para ela como se visse o Clark Kent entrar no banheiro e sair Super Homem, só que o inverso. Cinderela virando abóbora, já que era quase meia noite.
Finalmente ela sentou na poltrona numerada fingindo que aquela era a sua casa e se acomodou. No conforto de casa nenhum dia não termina bem, o errado querendo ou não. E os quilômetros voaram.
Já que nem sempre a gente pode mudar o que um dia nasceu para ser, o caminho, pelo menos, merece um detalhe para ser lembrado. Aí, ao invés de contar 'aquele dia que deu tudo errado' você vai dizer 'aquele dia que sabe lá porque eu resolvi colocar um pijama dentro do ônibus'. Bobo, sem motivo, mas confortável.

Sábado fora de época

É que era quinta-feira, mas tinha cara de sábado.
E ela andou sozinha da festa até a sua casa, pensando no tempo que perdeu indo lá. Estava entre casais e estava feliz com eles. Mas ela não formava par.
Voltou pra casa pensando em como as pessoas olham estranho quem está ímpar, sempre como se fosse ruim ou como par em potencial, não há meio termo. Ela só estava ímpar, nunca significou que fosse ímpar. Só que o olhar estranho a fez se sentir só.
Na fila algumas pessoas queriam entrar, ela saiu. Pelo menos liberei o espaço, pensou. Ela soltou as amarras dos saltos e agradeceu por pisar descalça no asfalto. Aquele não era o mundo dela, não lembra se um dia foi. Deve ter sido.
Caminhou sozinha de madrugada até chegar em casa. Ainda um tanto bêbada, outro tanto carente. Ouviu uma trocada de marcha errada na rua, o carro chiou, ela abriu a janela e perguntou se tudo estava bem. Era o vizinho. Nunca tinha falado com ele. Não sabe porquê perguntou aquilo, só fez. Ele respondeu que sim, que tudo estava bem.
Fechou a janela, riu de si mesma e xingou em voz alta aquela sensação. Vestiu o pijama e escreveu até dar sono. Meio bêbada, meio vazia, perdida entre estar ímpar e dever ser par.
E pensando no quanto já foi feliz até sendo o que não era postou isso, mandou à merda, e dormiu.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A menina que colecionava vidas

Helena era uma garota de passos leves, cabelos curtos e franja caindo nos olhos. Andava pela rua como se não pudesse ser vista, pelos cantos, com o rosto enfiado em páginas de livros mofados. Volta e meia soprava de volta o cabelo que atrapalhava a visão, volta e meia girava o olhar em torno para não tropeçar e cair. Escondido no livro havia o sorriso de Helena, convencido de que conseguiu um novo item para sua preciosa coleção de vidas.
Entrou em casa fechando as páginas, deixando o pó subir. Correu em direção ao seu cômodo favorito, trancado a sete chaves com todas as histórias que ela pudesse reunir. Lá dentro um mundo só seu, onde pais desejavam feliz aniversário a seus filhos, amantes se declaravam, desconhecidos proclamavam o futuro e amigos abraçavam em tons vogais. Helena sabia que em cada livro de sua coleção havia uma história escondida, de vidas que por alguma coincidência se cruzaram e foram parar em suas mãos.
Olhou em volta, decidindo onde sua nova aquisição seria guardada. Abriu novamente as primeiras páginas de Chega de Saudade, de Ruy Castro, onde leu em pequenas letras esticadas para a direita: “João Gilberto, certa vez, disse a alguém: ‘o vento está descabelando as árvores’. Como resposta ouviu que ventos não tinham cabelos e cortou, de forma fulminante, devolvendo: ‘E há pessoas que não têm poesia’. Você é uma pessoa feita de versos. Obrigado por me deixar ler. Te amo.” Helena abraçou o livro, suspirando, fechou os olhos e imaginou um casal de ‘final feliz’. Para ela livro sem dedicatória não era um presente, era um ‘passar adiante’. Não importava a Helena o que aconteceu a eles depois, desde que aquele momento eternizado nas páginas amareladas durasse para sempre. E, dia após dia, ela voltava aos sebos da Praça da Sé em busca de outros finais felizes.
As prateleiras de Helena estavam abarrotadas de vidas em livros que ela nunca lia - só lhe interessava a dedicatória. Sentava em sua poltrona e folheava os dias das pessoas, sonhando com os lugares em que as histórias foram escritas, no momento sempre passageiro em que o sentimento se transportou para aquelas páginas. Era feliz vivendo a vida dos outros.
Na manhã seguinte voltou ao seu passatempo favorito. Entrou na loja sentindo o nariz coçar com a poeira –adorava a sensação –e se embrenhou nos corredores atrás de uma nova vida colecionável. Abriu Maquiavel, Saramago, Carlos Drummond, Agatha Christie, Tolstoi, Poe, Gabriel Garcia-Márquez e Lispector. Nada. Respirou fundo, esperançosa, e mudou de prateleira procurando outros romancistas, já que “o amor sempre dá boas dedicatórias”. Cervantes, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Jane Austen: Nada. As vidas haviam sumido junto com as pessoas que se desfizeram dos livros. Mas Helena tinha uma última carta na manga: Shakespeare, o melhor romancista da história. “De Shakespeare nem as vidas podem fugir”, pensou, lembrando que nunca havia lido nada do autor. Correu ao fundo da loja e procurou, procurou, folheou. Nada. Sentiu-se vazia, como se a própria vida tivesse desistido dela. “Como poderia não haver nenhuma? Como as pessoas podiam não dedicar um livro?”
Baixou os ombros desanimada e caminhou para a saída sem saber o que seria do seu dia sem uma história para guardar. A poucos metros da saída um livro de capa de couro vermelha chamou sua atenção, havia um papel colado nele com uma flecha rabiscada apontando o título “Helena” de Machado de Assis. O coração da jovem acelerou, curioso. Helena apoiou o livro entre os dedos finos, prendeu a respiração e abriu a capa. Palavras em tinteiro preta foram rabiscadas há pouco ali, a tinta ainda brilhava e borrava as costas da página inicial. “A Helena de Machado de Assis jamais viveu o amor que sentia, a vida que era dela e o tempo que lhe foi dado. Não faça o mesmo. Com amor, G.”
Silêncio.
Não havia nome, não havia data, mas Helena enfiou o rosto entre as páginas e sorriu, corando, sentindo um nó se formar na garganta, as pálpebras úmidas. Abriu o livro em uma página qualquer e, como nunca havia feito, leu. “...Uma lágrima brotou-lhe dos olhos, quente de todo o calor de uma alma apaixonada e sensível; brotou, desligou-se e foi cair no papel.”. A palavra ‘papel’ borrou.
Helena agarrou o livro nos braços como se a sobrevivência dependesse disso, a cabeça borbulhando em pensamentos, o estômago remexendo sem ser fome. Saiu do sebo radiante como o sol que retocava as cores da rua. Nunca na vida havia recebido uma dedicatória. Pela primeira vez em anos colecionando mensagens sentiu verdadeiramente o efeito delas. Entre versos e sonhos de finais felizes Helena despertou-se para uma nova coleção. Quem era G? "Com amor?" Como encontra-lo? Perguntou-se.
E a garota dos livros se encheu de planos e começou a colecionar lembranças.